Tarifa zero se populariza, mas financiamento ainda é dúvida

21/12/2023

Fonte: Folha De S. Paulo - SP

Trinta e dois anos separam a primeira tentativa de tarifa zero na cidade de São Paulo da investida iniciada no último domingo (17). Em três décadas, o que parecia um devaneio da esquerda ganhou força política após as manifestações de junho de 2013 e beira 2024 abraçada também pela ala da direita.

A proposta surgiu durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1993), na época no PT, quando Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, ganhou ônibus gratuitos. Na ocasião, a proposta de levar o serviço para toda a cidade foi ignorada pela Câmara. Em seguida, o município de Conchas (SP), a 179 quilômetros da capital, se firmou em 1992 como o primeiro a adotar catracas livres.

Desde lá, já são 89 cidades com o sistema. O levantamento é da Coalizão Triplo Zero, rede que reúne organizações como Idee (Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor) e Movimento Passe Livre em prol da mobilidade urbana. Mestre em planejamento urbano e regional pela USP e coordenador na Fundação Rosa Luxemburgo, Daniel Santini é o responsável por acompanhar a evolução. Ele destaca o aumento expressivo de adesão em 2023. Foram ao menos 27 novas cidades, crescimento de 43,5%.

Para o pesquisador, há uma conjuntura econômica e política que deu força à gratuidade. "O sistema de transporte por ônibus se aproxima de um colapso financeiro. O número de passageiros caiu drasticamente durante a pandemia, em 2020, e não conseguiu se recuperar. É um cenário que cresce junto a um momento político em que a tarifa zero é muito atraente. Ela dá votos e isso não pode ser ignorado na análise."

Dados públicos da SPTrans sobre o transporte de passageiros nos ônibus de São Paulo mostram um pico em 2011, com 2,9 bilhões de pessoas. O número se estabiliza até a queda acentuada em 2020, quando passa para 1,5 bilhão. Até novembro deste ano, a rede municipal havia transportado 1,9 bilhão, valor ainda abaixo dos parâmetros pré-pandemia. Levantamento da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) sobre todo o país mostra que o sistema de ônibus atingiu 85% do que transportava antes de 2020, com prejuízos às empresas na ordem de R$ 36 bilhões.

"O modelo de transporte coletivo baseado na tarifa faliu. As cidades são obrigadas a encontrar outras formas, porque em algumas situações o empresário desistiu do contrato, e a tarifa zero atende melhor os usuários", afirma o coordenador do programa de mobilidade urbana do Idee, Rafael Calabria.

Mas financiar as catracas livres também é um problema de ordem econômica difícil de resolver. Em São Paulo, por exemplo, a estimativa é que o custo alcance R$ 10 bilhões ao ano. A prefeitura já repassa às empresas cerca de R$ 5 bilhões.

A cidade mais populosa com a tarifa zero é Caucaia, no Ceará, com 355 mil habitantes. O custo estimado em R$ 25 milhões ao ano é pago com remanejamento orçamentário. Em Maricá, no Rio de Janeiro, os R$ 12 milhões mensais usados para liberar catracas vêm dos royalties do petróleo.

Já Vargem Grande Paulista, na Região Metropolitana de São Paulo, criou um fundo abastecido pelo vale-trans-porte pago pelas empresas. São Caetano do Sul também usa dinheiro de seu Fundo de Apoio ao Transporte. Mas, no caso da cidade do ABC paulista, o fundo é mantido por receitas de multa e publicidade no transporte.

Autor daquela que é considerada a primeira proposta de tarifa zero no Brasil, o ex-secretário de mobilidade na gestão Erundina, Lúcio Grego ri, destaca a importância da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 25/2023 para a gratuidade em nível nacional.

"A proposta cria o Sistema Único de Mobilidade, algo parecido com o SUS (Sistema Único de Saúde), e traz nova fonte de financiamento da tarifa zero para União, estados e municípios. Ela apresenta uma contribuição pelo uso do viário em que automóveis pagam de acordo com seu tamanho." A PEC está em análise pelas comissões da Câmara.

Enquanto os modelos de financiamento ainda são estudados, os reflexos da liberação das catracas ficam claros com a adesão de cada vez mais cidades. "O primeiro impacto é um aumento avassalador de passageiros. As pessoas passam a ter acesso livre à cidade. Isso traz desde aumento da atividade econômica no comércio até a redução das faltas nas consultas médicas", afirma Rafael Calabria. O coordenador no Idee pontua que é preciso aumentar a frota para atender a nova demanda.

O presidente da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), Francisco Christovam, vê com ressalvas a gratuidade. Ele defende que a tarifa deve ser reduzida e paga não apenas pelo passageiro, mas também pelo poder público por meio de subsídio. Mas, para o empresário, liberar as catracas fará a qualidade do serviço cair.

"A população não está sendo consultada. O que será que ela prefere? Ônibus de graça e superlotados ou uma tarifa módica e lotação razoável? Nossa preocupação é que a prefeitura remunere de forma justa a quantidade de ônibus necessária para liberar as catracas."

Para a professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e coordenadora do LabCidade, Raquel Rolnik, a discussão precisa ir além de não pagar a tarifa. "Estamos falando na universalização do direito de ir e vir. A discussão é ter sistema de ônibus de qualidade, eficiência e conforto, coisas que não temos hoje pagando tarifa."

Estamos falando na universalização do direito de ir e vir. A discussão é ter sistema de ônibus de qualidade, eficiência e conforto, coisas que não temos hoje

Raquel Rolnik professora da FAU-USP

Autor(a): Vanessa Selicani