Os números não mentem e indicam caminhos a seguir
15/10/2024
A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU lançou, no seu Seminário Nacional realizado em agosto passado, a versão atualizada do Anuário NTU 2023/2024, com 30 anos de monitoramento da situação do transporte urbano por ônibus, no Brasil. O documento apresenta uma série histórica completa de onze indicadores operacionais – demanda de passageiros, quilometragem produzida, viagens realizadas, frota operacional, idade média da frota, custo por quilômetro, tarifa pública média, entre outros – obtidos em nove capitais e regiões metropolitanas que, juntas, representam aproximadamente 33% da frota nacional e 34% da quantidade de passageiros transportados no país. Os levantamentos e as análises realizadas permitem um bom entendimento da evolução do principal meio de deslocamento nas cidades brasileiras.
No mesmo evento, a Confederação Nacional do Transporte – CNT apresentou os resultados da Pesquisa de Mobilidade da População Urbana, cujo objetivo central foi levantar informações para a elaboração de políticas de transporte de passageiros, em âmbito nacional. A pesquisa buscou retratar a realidade de 319 municípios, com população superior a 100 mil habitantes que, juntos, somam 115,6 milhões de pessoas, ou seja, 57% da população brasileira. A classificação social dos entrevistados foi determinada pelo Critério Brasil de Classificação Econômica, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa – ABEP. Com base nesse critério, 72,6% dos entrevistados pertencem às classes C, D e E, ou seja, a parcela da população que mais utiliza o transporte coletivo. Foram realizadas 3.117 entrevistas com os responsáveis pelo domicílio e 6.947 entrevistas com moradores, gerando um grau de confiança de 95% e uma margem de erro de 1,8%, para os primeiros entrevistados, e de 1,2%, para os segundos.
Embora os dois trabalhos tenham seguido as melhores e mais modernas técnicas de levantamento e análise de dados, o cruzamento das informações obtidas é que permite um diagnóstico e um prognóstico muito acurado da real situação do transporte coletivo urbano de passageiros, no Brasil. Se o anuário pode ser comparado a um filme, com roteiro bem definido, a pesquisa apresenta uma foto da situação, com foco e detalhes muito precisos.
O Anuário da NTU mostra que, nos últimos dez anos, houve uma queda de cerca de 45% no número de passageiros transportados, mensalmente. Em 2013, o número médio de passageiros transportados, por mês, foi de 390 milhões e, em 2023, esse número caiu para 214 milhões. Com relação à quilometragem produzida, no mesmo período, a redução foi de 40%, ou seja, de 230 milhões de quilômetros para 138 milhões de quilômetros, por mês.
É importante ressaltar que esses números foram drasticamente afetados no período da pandemia, quando houve uma redução de até 80% da demanda de passageiros, em março de 2020. De lá para cá, houve uma gradual recuperação da demanda; mas, a quantidade atual de passageiros transportados continua cerca de 15% inferior ao volume verificado no período anterior à pandemia. É possível inferir que se trata de uma demanda perdida, composta por passageiros que fizeram a opção por outro modo de deslocamento – carro próprio, motocicleta, serviço por aplicativo, carona solidária, entre outros – e que, muito provavelmente, não retornam para o transporte público.
Uma outra avaliação apresentada no Anuário da NTU diz respeito à produtividade do setor, ou seja, a evolução do índice de passageiros equivalentes por quilômetro – IPKe, cuja variação foi de 2,52, para 1,59, para 1,68 e para1,53, nos anos de 1993, 2003, 2013 e 2023, respectivamente. Essa alteração representa uma perda de cerca de 40% de produtividade, no período de 1993 a 2023 e se deve, basicamente, ao baixo investimento em infraestrutura e ao aumento crescente dos congestionamentos urbanos, que reduzem a velocidade média da frota, aumentam o tempo de viagem, afetam o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e comprometem a modicidade tarifária.
Outro índice que merece ser analisado é a queda do número de passageiros transportados, diariamente, em cada veículo do sistema de transporte urbano, com uma redução de 631, para 428, para 407 e para 295, nos anos de 1995, 2003, 2013 e 2023, nessa ordem. Essa perda, de cerca de 53%, no desempenho da frota, pode ser atribuída à redução da demanda e ao baixo nível de priorização do transporte coletivo nos sistemas viários das cidades brasileiras.
Para completar, vale citar a evolução da idade média da frota brasileira de ônibus destinados ao transporte urbano, que variou de 4,53, para 5,60, para 4,47 e para 6,42 anos, em 1995, 2003, 2013 e 2023, respectivamente. É importante destacar que, nos últimos três anos, o indicador atingiu os resultados mais elevados de toda a série histórica, de quase 30 anos.
A pesquisa da CNT, por sua vez, apresenta uma gama enorme de informações, relevantes e importantes, para uma avaliação do perfil e do comportamento do passageiro do transporte urbano e para a tomada de decisões que podem definir uma nova ordem de valores, na prestação desse serviço público.
A pesquisa mostrou que o ônibus ainda é o meio de transporte mais utilizado pela população brasileira, representando cerca de 31% dos deslocamentos realizados, muito semelhante à utilização do carro próprio. Vale mencionar que, de 2017 para 2024, a utilização do ônibus caiu de aproximadamente 45% para 31%, o uso do carro passou de 22% para quase 30% e o da moto mais do que duplicou, passando de 5% para 11%. No mesmo período, o uso dos serviços por aplicativos subiu de 1% para 11% e os deslocamentos a pé mantiveram-se praticamente estáveis, representando 22% das viagens realizadas.
Outro dado interessante diz respeito ao custo médio diário, por tipo de transporte utilizado. O dispêndio diário com as viagens por taxi, carro próprio, aplicativos, mototáxi e moto própria, é da ordem de R$46,00, de R$30,00, de R$27,00, de R$13,00 e de R$11,00, respectivamente, enquanto o deslocamento por ônibus custa, em média, R$9,75.
Um ponto que chama a atenção é a quantidade de pessoas que relataram ter mudado o modo de deslocamento, nos últimos anos. Pela pesquisa, quase 30% dos entrevistados deixaram de utilizar e outros 27% diminuíram o uso do ônibus, substituindo-o por outros meios de transporte como o carro próprio (38,5%), as viagens a pé (19,3%), os aplicativos (18,2%) e a moto própria (14,7%).
Os principais motivos que provocaram essas substituições foram: pouco conforto (28,7%), falta de flexibilidades nos horários e nas rotas (20,7%), elevado tempo de viagem (20,4%), mudança do local de trabalho (17,2%), preço elevado da tarifa (11,8%), insegurança (11,4%) e baixa confiabilidade (10,2%).
Mas, uma das informações mais importante da pesquisa é que 63,5% dos entrevistados que deixaram de usar o ônibus voltariam para o transporte público, desde que a tarifa fosse menor (21,2%), os ônibus tivessem mais conforto (19,8%), as viagens fossem mais rápidas (19,0%), as rotas e os horários fossem mais flexíveis (14,3%), os ônibus fossem mais pontuais (12,8%) e o serviço fosse mais seguro (8,7%). Outra informação relevante é que 25,2% das pessoas que deixaram de utilizar o ônibus voltariam a utilizar o serviço, se a tarifa fosse reduzida pela metade.
Assim, após o cruzamento das informações disponíveis nos dois trabalhos e feitas as correlações necessárias, pode-se chegar às seguintes conclusões ou recomendações:
- O transporte coletivo urbano de passageiros ainda é e continuará sendo um serviço público essencial, estratégico e fundamental para a organização do espaço urbano e para a boa qualidade de vida das pessoas que vivem nas cidades. O ônibus também continuará sendo o principal meio de deslocamento das pessoas, nas cidades brasileiras;
- As autoridades, nas três esferas de governo, precisam reconhecer que o transporte público é um dever do Estado e um direito do cidadão. Não há como prestar serviço de qualidade à população sem investimentos em infraestrutura adequada – pista de rolamento, estações de embarque e desembarque, terminais de transferência, sistemas de comunicação, entre outros;
- É notória a mudança de hábitos da população que utiliza os serviços de transportes públicos e dos atributos que interferem na opção do passageiro pelo transporte coletivo em detrimento do transporte individual. O passageiro precisa ser tratado como cliente e suas necessidades e expectativas levadas em conta, na definição das características do serviço a ser prestado;
- A migração dos passageiros do transporte coletivo para o transporte individual – carro, moto, aplicativo – se deve muito à falta de investimentos para o financiamento da infraestrutura e da renovação da frota, bem como para o custeio da operação, tornando o transporte por ônibus pouco atrativo, pouco flexível e muito pouco competitivo com os outros modos existentes nas cidades;
- A recuperação da chamada “demanda perdida” só será possível com a redução do valor das tarifas e significativa melhoria na qualidade do serviço prestado, incluindo o uso de infraestrutura adequada, correto dimensionamento da demanda e da oferta, definição de rotas e horários mais flexíveis e prestação do serviço com confiabilidade, regularidade e pontualidade;
- É preciso acelerar as mudanças em curso, de ordem institucional, econômico-financeira, jurídica e operacional, incluindo a alteração do perfil tecnológico da frota e a concessão de subsídio aos passageiros com renda insuficiente para bancar o custo da prestação dos serviços;
- É imprescindível a separação da tarifa técnica (remuneração da operação) e da tarifa pública (valor pago pelo usuário), bem como afiançar a segurança jurídica dos contratos de concessão ou de permissão dos serviços. O serviço de transporte público é de responsabilidade do Estado e as empresas operadoras são apenas parte do processo de produção dos serviços.
*Francisco Christovam é diretor-executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), vice-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (Fetpesp) e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional do Transporte (CNT) e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Engenharia