O desafio da mobilidade – Parte 2: nas grandes cidades, o subsídio invisível

05/11/2024

Fonte: O FATOR 

Novidade no país, aporte público para complementar valor dos bilhetes é opção a locais que não adotaram gratuidades

Nas cidades pequenas, a tarifa zero faz parte, de forma cristalina, do cotidiano dos usuários do transporte público. É o morador de um distrito que vem “à cidade” sem gastar um centavo; é o usuário que não precisa se preocupar mais com o cartão do vale transporte; são os ônibus sempre mais cheios, porque mais pessoas estão utilizando aquele meio de transporte.

Nas grandes cidades, a tarifa zero é ainda algo muito distante do dia a dia dos passageiros. Na maioria dos municípios de porte médio e nas capitais, é o usuário quem continua financiando a totalidade do custo dos bilhetes. Mas, em um grupo de 237 prefeituras brasileiras, o que há é uma espécie de “parceria” entre o usuário e o poder público por meio de um subsídio, que varia de 75% do valor cobrado pelo embarque, como é o caso Araucária (PR), a 2%, como ocorre em Linhares (ES). Na cidade capixaba, o usuário paga os outros 98% do custo da tarifa.

A subvenção não é uma realidade apenas nas grandes cidades brasileiras. É assim, por exemplo, em Madri, onde o poder público arca com 75% do custo da passagem, em Amsterdã, na Holanda (61%), em Frankfurt, na Alemanha (56%) ou em Lisboa, em Portugal (30%). Segundo levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transporte de Ônibus (NTU), nas cidades europeias, o percentual médio dos subsídios está na faixa de 55%.

Realidades distantes

No Brasil, o processo para uma eventual implantação da tarifa zero nos grandes centros vai além do desejo dos prefeitos. O problema é que a realidade de uma capital como Belo Horizonte, por exemplo, é muito distante da de Leopoldina na Zona da Mata, onde a prefeitura paga R$ 230 mil por mês para que garantir a universalização das passagens.

A primeira diferença está na forma como as grandes cidades são organizadas. Nelas, o grau de verticalização é muito maior que nas menores. É como se uma localidade existisse por cima da outra, não apenas uma, mas várias vezes. Assim, a verticalização faz que que sejam necessários mais ônibus em intervalos de tempos cada vez menores. Mais coletivos significam mais motoristas, mais combustível e mais gastos com manutenção, entre outras despesas que fazem parte da planilha de custos de uma viação.

Além disso, no interior, as distâncias que um morador tem de percorrer diariamente são muito menores do que em uma capital como Belo Horizonte. Como exemplo, vamos novamente a Leopoldina. Lá, entre a Praça Félix Martins, no centro da cidade, e o Alto do Cemitério, a noroeste, na saída da em direção a BH, o trajeto em linha reta é de 1.800 metros, o que daria um pouco mais, mas não muito, considerando o trajeto das ruas que compõem a cidade. Para percorrer o trecho, o cidadão pode muito bem ir a pé, gastando não mais que meia hora.

Em uma capital, os pontos de interesse do cidadão estão dispostos em uma área muito maior do que em uma cidade do interior. Nestas, também anda-se mais de bicicleta, pois a concorrência com os veículos pesados é menos feroz. Em Belo Horizonte, quem opta por fazer seus trajetos a pé normalmente são as pessoas muito pobres, que não têm nem como pagar a passagem de ônibus.

Em resumo, nas cidades maiores, a demanda por transporte público é mais premente do que nas cidades menores. Trata-se, portanto, de um sistema mais caro. É por isso que, ao menos até agora, a tarifa zero nas capitais e cidades maiores ainda é uma realidade muito distante no horizonte. Quase uma utopia. A solução intermediária para estes município tem sido, até agora, o subsídio.

A complementação financeira no transporte público é uma novidade no Brasil. Até quatro anos atrás, o custo da passagem era bancado, na maior parte das cidades maiores, integralmente pelo passageiro. A situação mudou com a pandemia da Covid-19, que obrigou a população a ficar em casa. Sem os passageiros, as empresas perderam boa parte das receitas e, de uma hora para outra, os sistemas passaram a operar no vermelho.

Porém as prefeituras não queriam que o atendimento ao cidadão fosse interrompido. Por isso, passaram a aportar recursos no sistema na forma de subsídios. Estudo do NTU aponta que o número de cidades com subvenção permanente ao transporte público passou de 120 antes da pandemia para os atuais 237. O numero inclui 18 capitais e sete regiões metropolitanas. Na média, o subsídio é da ordem de 30%.

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‘Estávamos em um buraco

Belo Horizonte está entre as cidades em que a pandemia obrigou a prefeitura a arcar com parte do custo da passagem. “Nós estávamos em um buraco”, define o superintendente de Mobilidade da Prefeitura de Belo Horizonte, André Dantas.

O buraco citado por Dantas diz respeito à redução do número de passageiros e, consequentemente, da receita. Sem a arrecadação, os ônibus iriam gradativamente deixar de circular, o que afastaria ainda mais os passageiros, que iriam buscar meios de transporte alternativos. O resultado final seria o colapso do sistema de coletivos da capital mineira.

Para reverter o quadro, ou “tentar sair do buraco”, nas palavras de André Dantas, a prefeitura implantou um subsídio de transição, que vigorou durante um ano, de março de 2022 a março de 2023, e evitou que, naquele momento, a passagem fosse reajustada de R$ 4,50 para R$ 6,90. Ao final do primeiro ano do subsídio, o prefeito Fuad Noman (PSD) enviou para a Câmara Municipal um projeto de lei que instituía o subsídio permanente ao transporte coletivo da capital. Hoje, a tarifa de referência é de R$ 5,50, valor pago pelos passageiros na catraca. O restante do custo da passagem é bancado pelo Executivo.

O resultado prático do subsídio é que o número viagens realizadas durante o dia passou de cerca de 15 mil durante a pandemia para 21.700. No período noturno, o aumento do número de viagens foi maior: foi de 150 para as atuais 528. Por ano, o aporte custa aos cofres do município R$ 1,6 bilhão, montante equivalente a 8% do orçamento total do município para este ano, fixado em R$ 19,8 bilhões.

O subsídio corresponde a 33% do custo de operação do sistema de ônibus da capital. Tendo como referência esse percentual, a tarifa zero custaria, teoricamente, R$ 4,8 bilhões, ou seja, 24% do orçamento do município. Isso, em tese, pois o valor não contempla o forte aumento da demanda que normalmente ocorre quando da universalização do acesso gratuito ao sistema de transporte.

Assim, para atender a essa demanda extra seriam necessários mais ônibus, mais linhas, mais motoristas e mais combustível.

“Quando você oferta alguma coisa de graça, a teoria econômica básica diz que o custo vai aumentar”, afirma André Dantas.

É por isso que ele prefere não fazer acenos a uma possível implantação da tarifa zero em Belo Horizonte. Para André Dantas, há duas realidades que sustentam essa ideia. A primeira é de que não há, no cenário econômico do país, perspectivas de transferência de recursos da União, ou mesmo do Estado, para o custeio de sistemas de transporte público. A segunda é que um eventual aumento da subvenção, tendo como meta a tarifa zero, somente poderia ser implementada mediante aumento de impostos, algo que, no entender do superintendente de Mobilidade, não seria aprovado pelos vereadores.

Mesmo em um cenário mais favorável, ele entende que o justo, do ponto de vista social, seria priorizar a gratuidade para a população de baixa renda.

“Será que ela (a isenção) não deveria ser direcionada para quem precisa? Por que eu vou dar para quem não precisa?”, questiona o superintendente de Mobilidade da Prefeitura de Belo Horizonte. Para ele, esta é uma discussão importante que ainda está por ser feita.

Na perspectiva de Dantas, a melhoria do sistema de ônibus de Belo Horizonte é uma equação complexa na qual outras variáveis, que não apenas o custo da passagem, precisam ser consideradas. Uma delas é a qualidade dos veículos. Como ele faz questão de ressaltar, 90% dos ônibus coletivos belo-horizontinos têm ar condicionado e suspensão pneumática, o que torna as viagens mais confortáveis, sem contar o fato de que frota da capital tem uma idade média de cinco anos.

“Isso custa”, aponta.

Ele afirma que em muitas cidades que oferecem a tarifa zero, a frequência dos ônibus é de uma em uma hora. “Se eu colocar um ônibus circulando de hora em hora aqui, o passageiro não aceita”, observa.

Outro caminho

André Dantas considera que a melhoria da mobilidade na capital passa por um outro caminho: a valorização do transporte coletivo em detrimento das alternativas individuais. Isso significa aumentar a extensão das faixas exclusivas dos ônibus, para reduzir a duração das viagens, investir em veículos modernos, além criar mais rotas para outros modais de transporte, como as ciclovias.

Para ele, a tarifa zero não é a solução tecnicamente mais apropriada para a mobilidade porque deixa de lado o principal problema, que é a prioridade que foi sendo dada nas grandes cidades ao transporte individual. Em uma analogia com uma pessoa obesa, seria o mesmo, segundo André Dantas, que dar a ela uma calça de elástico para que se sinta melhor.

A ideia defendida pelo superintendente de Mobilidade de Belo Horizonte é a mesma encampada por Zeno José Andrade Gonçalves, secretário de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal. A prioridade em solo brasiliense também é criar incentivos para atrair mais passageiros ao sistema de ônibus e, com isso, ter um ganho de escala que permita chegar a uma tarifa que pese menos no bolso do usuário.

Entre as prioridades, ele cita a construção de grandes eixos viários para aumentar a velocidade do descolamento e, com isso, oferecer regularidade e previsibilidade de horários para o passageiro. “É um desafio que a gente está buscando aqui”, projeta.

A meta do governo do Distrito Federal é, dentro de um ano, aumentar em cerca de 10% o número de usuários regulares do transporte coletivo e, com isso, ampliar a entrada de recursos por parte do cidadão que usa o sistema.

Paralelamente, o poder público local pretende lançar, ainda neste ano, uma licitação para conceder à iniciativa privada a operação de áreas de estacionamento dentro do Plano Piloto, algo que grandes cidades do mundo já fazem como forma de obter recursos para custear o subsídio do transporte. Zeno ressalta que além dos recursos, o estacionamento irá desincentivar o uso do veículo particular nos deslocamentos das cidades satélite para o Plano Piloto, cuja população passa de 230 mil à noite para cerca de 1,3 milhão durante o dia.

Zeno Gonçalves não descarta a tarifa zero em um cenário futuro. Ele apenas defende que o caminho nessa direção seja trilhado com muita cautela, especialmente porque a implantação de uma hora para outra gera um aumento de demanda muito grande, que ele diz não saber sistemas maiores, como os das capitais, teriam como suportar..

“Acredito que é um tema que a gente vai ter que encarar e buscar alguns avanços, nos finais de semana, por exemplo, ou por categorias profissionais ou em determinados horários. Para, pouco a pouco, ir caminhando na direção de um transporte público mais acessível, mais inclusivo”, avalia.

Zeno também entende que deve ser vista de forma relativa a ideia de que não seria justo pessoas que podem pagar pela tarifa terem direito à gratuidade. Ele afirma que, do ponto de vista da universalização do acesso, essa argumentação não se sustenta, tendo em vista, por exemplo, a existência do SUS ou da farmácia popular. Ou mesmo, como em Brasília, do passe livre estudantil, ao qual têm direito todos os alunos, sejam eles de escolas privadas ou de escolas públicas.

“Aqui em Brasília, nos temos estudantes que pagam R$ 10 mil de mensalidade escolar e têm passe livre”, observa.

Na RMBH, usuário banca todo o custo

A exemplo do Distrito Federal, a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) é atendida por um sistema presente nos 34 municípios e que  transporta, diariamente, entre 500 e 600 mil pessoas, com uma frota de 2,5 mil ônibus, distribuídos em sete consórcios de empresas. Porém, diferentemente do DF, na RMBH, quem banca o custo do transporte é apenas o usuário.

Ao menos por enquanto não há, segundo Pedro Calixto, secretário adjunto de Infraestrutura, Mobilidade e Parcerias do governo de Minas (Seinfra), nenhum estudo visando sobre a concessão de uma subvenção por parte do governo do estado. Por ora, a prioridade, segundo Calixto, é reduzir a idade média da frota, que é hoje de 11 anos, mais que o dobro dos ônibus gerenciados pela Prefeitura de Belo Horizonte.

“Nossa média é muito alta”, reconhece.

A renovação da frota foi acertada em acordo firmado no último dia 2 de setembro entre governo de Minas, Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG). O trato prevê a compra de 600 ônibus para a renovação de 25% da frota até o ano que vem. O aporte de R$ 382 milhões será feito, segundo a Seinfra, para reequilibrar os contratos com as empresas, que foram afetados pela pandemia. Segundo Pedro Calixto, o sistema ainda opera com um número de passageiros inferior ao de antes da pandemia.

Na lista de prioridades da Seinfra estão também a implantação de corredores para reduzir o tempo de viagem, de forma a melhorar a percepção do usuário sobre o sistema. Outra meta é a integração entre o sistema metropolitano e os sistemas municipais, de tal modo que o passageiro não precise pagar duas passagens quando, por exemplo, sai de um município vizinho rumo a Belo Horizonte e, ao chegar à capital, tem de pagar uma segunda passagem. Estudos iniciais com esse objetivo já estão sendo feitos com as prefeituras de Belo Horizonte e Contagem. Pedro Calixto espera que, com o fim do processo eleitoral, as conversas avancem.

Somente após implementadas estas medidas, ele afirma que será aberta a discussão sobre o subsídio. A eventual concessão de benefício depende de um debate envolvendo a Assembleia Legislativa.

Busca por novo modelo

Em Belo Horizonte, a Superintendência de Mobilidade (Sumob) trabalha com a visão de que é preciso buscar um novo modelo de operação do sistema, que leve em conta também as novas tecnologias. Ele citou um exemplo do que pode vir a ser implementado: recentemente, a Sumob foi procurado pelas duas principais bandeiras que operam cartão de crédito no país – Visa e Mastercard – para conseguir da prefeitura autorização para instalar máquinas no interior dos ônibus, para que os passageiros pudessem pagar a passagem pelo cartão de crédito.

Dantas revela que as operadoras propuseram a cobrança de um percentual de apenas 1% sobre os pagamentos que vierem a ser feitos nas máquinas que forem instaladas nos ônibus, índice quase quatro vezes menor do que é praticado pelas companhias. Nesse caso, como ressalta André, o que em está em jogo para as operadores vale muito mais que a receita perdida com a redução da tarifa.

Trata-se das informações dos usuários, que teriam que se cadastrar para passar a fazer o pagamento com as máquinas do cartão de crédito. “Uma vez que o usuário se cadastra, ele pode ser bombardeado com ofertas pelo WhatsApp, por e-mail ou pelo SMS”, explica.

Ele pretende que novas alternativas de financiamento do sistema estejam presentes na licitação que a prefeitura irá fazer para definir um novo modelo de operação do sistema. O primeiro passo será a contratação de um consultoria internacional especializada que ficará responsável pela elaboração do edital.

 “Não consigo aceitar Belo Horizonte chegando a 2028 (quando vencem os atuais contratos de concessão) com o sistema operando nos mesmos moldes de hoje. Nós temos a obrigação de exigir de nós mesmos arrojo para conceber coisas diferentes. Não adianta fazer a mesma coisa e esperar um resultado diferente, porque ele não virá”, afirma André Dantas.

Subsídio banca o congelamento

Na mais populosa cidade brasileira, São Paulo, com seus 11,4 milhões de habitantes, o subsídio corresponde a 47% do custo da tarifa. A medida existe há cerca de 20 anos e, a partir de 2020, com a pandemia, foi o que garantiu, para o usuário, o congelamento do preço da passagem em R$ 4,40. Quando foi implantado, não existia a bilhetagem eletrônica, o que fazia o transporte ser mais caro para o usuário.

A partir de 2004, com a implantação da bilhetagem eletrônica e do Bilhete Único, o passageiro passou a usufruir das transferências entre ônibus pagando apenas uma tarifa. Segundo a Prefeitura de São Paulo, a medida fez com que o investimento necessário no subsídio tivesse de ser maior. O novo modelo também permitiu o registro das gratuidades de idosos.

Em 2004, o subsídio custou R$ 280 milhões. Em 2024, a Lei Orçamentária Anual (LOA) previu R$ 5,6 bilhões para a rubrica, o que equivale a 5% do orçamento municipal. Todos os recursos empenhados pela Prefeitura de São Paulo no subsídios ao transporte público saíram do Tesouro Municipal, sem repasses da União. 

Em nota, a Prefeitura informou que o Domingão Tarifa Zero já transportou mais de 125 milhões de passageiros gratuitamente desde o início do programa, em dezembro de 2023. Aos domingos, a demanda tem média de 2,9 milhões de passageiros, representando crescimento de 29% desde a implantação da política

Nos dias úteis, a frota é de 12.049 ônibus, que operam em 1.318 linhas. Após a pandemia de Covid-19, houve uma redução de 20% no número de passageiros transportados. Em agosto de 2019, eram cerca de 9 milhões de passagens por dia útil, contra 7,2 milhões em agosto do ano passado Questionada sobre a existência de projetos com o objetivo de aumentar o percentual do subsídio ou algum projeto para chegar a tarifa zero, a prefeitura preferiu não se pronunciar.

São Paulo poderia ter sido a pioneira

São Paulo poderia ter sido a primeira cidade brasileira a implantar a tarifa zero, em 1989, quando a hoje deputada federal Luiza Erundina, à época no PT, assumiu a prefeitura. A universalização do acesso gratuito ao serviço de transporte público não fez parte de seu projeto de governo. Ela foi apresentada a Erundina em meados de 1990, quando o engenheiro Lúcio Gregori assumiu, interinamente, a secretaria de Transportes.

Gregori levou para o transporte público a mesma lógica que adotava na secretaria de Serviços e Obras para gerir a coleta de lixo. Nesse serviço, o pagamento era feito às empresas de coleta mediante uma taxa que levava em conta a estimativa de frota, quilômetros rodados, pessoal e quantidade de lixo recolhido. Era esse o modelo que Gregori pretendia implantar nos coletivos

Erundina logo encampou a ideia e a levou para os demais secretários. No livro “A razão dos centavos”, Roberto Andrés afirma que não houve consenso entre os secretário em favor da tarifa zero. Um dos argumentos apresentados era de que não era correto concentrar um volume tão grande de recursos na remuneração de um único serviço público se havia tantos outros com demandas reprimidas.

A despeito disso, a prefeita insistiu na proposta e a colocou em debate público. A primeira reação veio do próprio PT, que fez uma série de ressalvas à extinção da tarifa. No caso dos vereadores petistas, houve um divisão entre o apoio incondicional e o apoio com reservas. Por não concordar com os argumentos apresentados, a prefeitura foi para a ofensiva, mobilizando movimentos sociais e lançando uma campanha publicitária em defesa da tarifa zero, com peças veiculadas nas TVs e nos jornais.

Com isso, no final de 1990, uma pesquisa revelou que 65,3% dos paulistanos eram a favor da proposta. Além disso, 82,4% sabiam que a implantação da tarifa zero iria significar aumento de impostos. Com isso, o projeto nem chegou a ser votado na Câmara, uma vez que a prefeita havia perdido a maioria e a oposição bloqueou a tramitação.

Benefício invisível

O grande problema do subsídio é que ele é um benefício invisível aos olhos do cidadão, diferentemente da tarifa zero, em que que não há dúvidas quanto ao que está sendo concedido. Nas cidades onde a passagem é subsidiada, permanece, para o morador, a impressão de que ele está pagando um valor muito alto pela passagem, ainda que o município arque com uma parte que, muitas vezes, corresponda a até mais da metade do custo total.

O desconhecimento acerca do subsídio aparece na pesquisa “Painel CNT de Mobilidade da População Urbana”, realizada este ano pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT). O levantamento foi feito entre os dias 18 de abril e 11 de maio, em 319 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, cuja população total corresponde a 115,6 milhões de brasileiros. No total, foram entrevistadas 10.061 pessoas.

De acordo com o estudo, 69,7% de todos os entrevistados não sabem o que é subsídio. Nos municípios com população entre 500 mil e 1 milhão de habitantes, o desconhecimento é ainda maior: 80,6%. A mesma pesquisa revelou que 58% dos entrevistados aprovam a tarifa zero universal e 28,7% apenas para determinados grupos, como os do Cadastro Único para Programas Sociais, que identifica as famílias de baixa renda.

A pesquisa revelou que os ônibus estão perdendo espaço como principal meio de transporte. Nos municípios com população entre 100 mil e um milhão de habitantes, o carro é o principal veículo de transporte, só perdendo a liderança para os coletivos nas localidades com mais de 1 milhão de habitantes. Nos municípios com população entre 1 e 3 milhões de habitantes, os ônibus respondem por 35,4% dos deslocamentos e o carro por 26,7%. Nas metrópoles, com população de mais de três milhões de habitantes, os ônibus melhoram mais sua posição, respondendo por 38,7% dos deslocamentos.

Porém, não se trata de uma posição tranquila a dos ônibus como principal meio de deslocamento nos municípios com mais de 100 mil habitantes. Neles, o ônibus continua perdendo usuários. De acordo com o estudo, quase um terço (29,4%) dos antigos usuários deixaram de usar totalmente os ônibus, enquanto um percentual um pouco abaixo (27,5%) reduziu o seu uso.

Outra informação importante diz respeito ao “preço” que os antigos usuários cobrariam para voltar a utilizar o ônibus como meio de transporte. Para 25,2% a redução da tarifa teria que ser pela metade. Outros 16,7% voltariam apenas com a tarifa zero. O percentual dos que não voltariam a utilizar o ônibus em hipótese alguma é de 23,2%. Algo que consegue segurar a perda de usuários é o fato de que, para 52,7% dos entrevistados, o ônibus é o único meio de transporte de que dispõem.

É o caso, por exemplo, da técnica de enfermagem Maria Luiza Gomes Ribeiro de Almeida, que mora no Barreiro, bairro popular localizado a oeste de Belo Horizonte. Ela pega duas conduções por dia, para ir para o trabalho e voltar para casa. Por dia, gasta entre 45 minutos a uma hora nos deslocamentos casa-trabalho e trabalho-casa.

Ela sabe que parte do valor da tarifa é subsidiada, mas acha que, ainda assim, o preço que paga é alto, tendo em vista a qualidade dos serviço e a superlotação dos carros oferecidos pelas viações.

“O ônibus é cheio no horário de pico de manhã, é cheio à noite. Às vezes, quando o ônibus está muito cheio, nem no ponto o motorista para”, afirma. Ela considera a tarifa zero uma boa medida, mas ressalta que só a gratuidade não resolve o problema. “Tem que melhorar o serviço”, frisa.

Maria Luíza é usuária do sistema metropolitano, cuja frota tem a idade média de 11 anos. Ela reclama muito da qualidade dos ônibus, que não têm ar condicionado, são desconfortáveis e não possuem vedação eficiente contra água no período de chuva. Pedro Calixto reconhece que a frota é antiga e precisa ser renovada, para que mais passageiros passem a utilizar o sistema metropolitano. “Esse é o nosso desafio”, reforça.

Maria Luíza cobra também a integração dos sistemas metropolitano e municipal, de Belo Horizonte, de tal forma que ela passe a pagar apenas uma passagem para chegar ao seu destino final. Pedro Calixto afirma que esta também é uma das prioridades da Seinfra.

Pesquisa revela afastamento do usuário

O distanciamento dos usuários em relação ao transporte público foi captado também por um estudo da NTU, que apontou a queda de dois indicadores de utilização do sistema. Um é da quilometragem produzida mensalmente, que caiu de 226,5 milhões em abril de 2013 para 143,3 milhões em outubro de 2023. Em abril de 2020, no mês seguinte ao da decretação do isolamento social, a quilometragem rodada chegou ao mínimo de 95,6 milhões de quilômetros. Houve uma melhora após a pandemia, mas a média de quilômetro rodados ainda é inferior à do período pré-pandemia.

Outro indicador é o número de viagens realizadas, que caiu de 381 milhões em abril de 2013 para 223 milhões em outubro de 2023. Em abril de 2020, esse valor chegou a 92,4 milhões. A exemplo do número de quilômetros rodados, houve um recuperação do número de viagens, mas esse número permaneceu estável nos últimos três anos, não tendo sido atingido o patamar de 2013.

Desafio monumental

A combinação da pesquisa da CNT e com a da NTU dá a dimensão do tamanho do desafio que as cidades de maior porte têm pela frente no sentido de recuperar os passageiros e, com isso, ter um ganho de escala que torne a operação do sistema mais rentável em um cenário sem a tarifa zero e apenas com o subsídio de parte do custo do bilhete.

A realidade das capitais e cidades de maior porte mostrou que não há como aumentar o subsídio às tarifas de ônibus ou mesmo, em um cenário mais distante, sem que se tenha novas alternativas de financiamento do sistema. É o que pretende, por exemplo, o governo candango ao licitar os estacionamentos localizados no Plano Piloto, ou a Prefeitura de Belo Horizonte, ao passar a incluir nos novos modelos do transporte público possíveis receitas oriundas da instalação de máquinas de cartão de crédito nos ônibus, apenas para citar alguns exemplos.

Uma das ideias mais ventiladas quando se aborda o assunto é a da criação de um sistema à semelhança do Sistema Único de Saúde, o SUS, só que voltado para a mobilidade. Caberia a este sistema buscar fontes de receita de alcance nacional e transferir os recursos aos estados e municípios, mediante a comprovação da prestação do serviço público de transporte.

Para isso, algumas soluções já aparecem. A NTU defende três alternativas. Uma delas é a Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico (Cide), criada por emenda constitucional em 2001. A Cide é cobrada a partir da importação e da comercialização de petróleo e seus derivados, gás e álcool combustível.

A previsão de arrecadação para este ano é de R$ 2,8 bilhões, dos quais cerca de R$ 650 milhões irão para os estados e R$ 210 milhões para os municípios. É um recurso empregado hoje, basicamente, para a manutenção de rodovias. Mas, em tramitação na Câmara dos Deputados, há projeto de lei que permite o uso da Cide também para aportes públicos no transporte coletivo.

Marcos Bicalho afirma que a Cide já teve uma arrecadação de R$ 20 bilhões por ano, quando o limite fixado na lei, de R$ 0,87 por litro de combustível, era praticado. O problema, segundo ele, é que com o correr do tempo, o governo, para reduzir o preço dos combustíveis, acabou cortando o valor da Cide. Nesse sentido, há, segundo ele, uma margem para se aumentar a receita da Cide e, desta forma, a receita que cobriria um aumento do subsídios ao transporte público ou ao financiamento da tarifa zero.

Outra possível fonte de recursos seria o Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (Spvat), que substituiria o antigo Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres (Dpvat), popularmente conhecido como “seguro obrigatório” e que vigorou até 2021. O Spvat está em fase de regulamentação, com previsão de que passe a ser cobrado ano que vem. A estimativa de arrecadação é da ordem de R$ 2,5 bilhões por ano.

O Spvat retoma o pagamento de despesas médicas de vítimas de acidentes com veículos, de indenizações por morte ou por invalidez permanente, de reabilitação profissional e de serviços funerários. Mas também vai destinar parte de seus recursos, entre 35% e 40% (algo entre R$ 875 milhões a R$ 1 bilhão) aos municípios e Estados onde houver serviço municipal ou metropolitano de transporte público coletivo.

Atualmente, segundo a NTU, o custo total de operação do sistema de transporte público brasileiro é estimado em R$ 80 bilhões por ano, dos quais o ônibus responde por algo em torno de R$ 60 bilhões. Os demais R$ 20 bilhões vão para o sistema ferroviário. Marcos Bicalho reconhece que, diante desse montante, os recursos da Cide e do Spvat não seriam muito significativos. Porém, constituem um bom indício de que é possível buscar fontes de financiamento também pelos estados, para os sistemas metropolitanos, e para os municípios.

No plano municipal, ele cita como possibilidade de receita a ampliação dos estacionamentos rotativos e o chamado “pedágio urbano”, que os automóveis pagariam para ter acesso a áreas congestionadas de trânsito. São ideias praticadas no mundo inteiro segundo a lógica de que a prioridade deve ser dada ao transporte público em detrimento do transporte individual, que produz uma série de fatos negativos e não oferece nenhuma contrapartida por isso.

“Então, se você pensar em termos de congestionamentos urbanos, se você pensar em termos de poluição ambiental e dos acidentes de transito, são externalidades provocadas pelo transporte individual que podem ser pagas para financiar o transporte público”, reforça Marcos Bicalho.

Ainda que os municípios menores tenham condições de financiar a tarifa zero, o mais importantes, no entender do diretor de Gestão da NTU, é que os municípios passem a dispor de fontes perenes que financiem o transporte e que não sobrecarreguem os sistemas de saúde, educação e segurança.

 

Em BH, projeto propõe Taxa do Transporte Público

Em Belo Horizonte, uma iniciativa no sentido de criar alternativas de financiamento do sistema no próprio município vem do projeto de iniciativa popular que propõe a tarifa zero para a cidade, regulamenta o Fundo Municipal de Melhoria da Qualidade do Transporte, já criado por lei, e institui a Taxa do Transporte Público (TTP).

A Taxa, no valor de R$ 172,15 por mês, seria cobrada pelas empresas para cada funcionário que tiver, a partir de dez empregados. O valor foi calculado como uma média ponderada entre ser um montante baixo e ao mesmo tempo, atender à necessidade de se ter cifras que viabilizem a tarifa zero na capital. Assim, de acordo com a proposta, empresas com até nove empregados ficariam isentas do pagamento da TTP. A que tiver dez, pagaria por um; a que tiver 20, pagaria por 11. A estimativa de arrecadação é da ordem de R$ 2 bilhões.

O urbanista Roberto Andrés lembra que hoje apenas uma parte dos empregos formais no Brasil contribui com o vale-transporte. Isso porque a política é opcional para os empregados e deixa de ser vantajosa para salários mais altos, que dispõem do transporte particular. A conta fica nas costas dos trabalhadores mais pobres, que contribuem com até 6% dos seus proventos, e dos trabalhadores informais, que pagam a tarifa em seus deslocamentos.

Para os autores da iniciativa, a tarifa zero é importante porque além de beneficiar diretamente a parcela mais pobre da população, que é a que mais necessita do transporte público, traz ganhos também para quem não anda de ônibus, pois  incentiva o uso do transporte público e diminui o fluxo de carros, melhorando o trânsito e diminuindo os acidentes e a poluição em toda a cidade.

“Nesse sentido, as externalidades positivas geradas pela gratuidade do transporte contribuem para a diminuição de custos públicos com gerência de trânsito, recapeamento de vias e com a saúde pública”, diz a justificativa que acompanha o projeto, que foi apresentado por uma coalizão de 42 instituições da sociedade civil, entre sindicatos de trabalhadores, movimentos ambientalistas e grupos políticos e esquerda, representados pela organização não-governamental (ONG) Instituto BH.

O projeto começou a tramitar no dia 5 de julho deste ano. Está, hoje, na comissão de Orçamento e Finanças. O relator, vereador Cleiton Xavier (MDB), solicitou à assessoria técnica da Casa uma análise inicial da proposta. O estudo considerou que a instituição da Tarifa do Transporte Público não tem amparo legal porque há uma lei federal que proíbe aos estados e municípios legislar sobre temas relacionados à remuneração do trabalhador. Trata-se, porém, apenas de um parecer. Até agora, não houve nenhuma votação do projeto na comissão de Orçamento e Finanças da Câmara.

Seja por meio da tarifa zero ou do aumento progressivo do subsídio, uma coisa é certa: o desafio da mobilidade está colocado. Dele não há como fugir. Que o digam a estudante Rosemary de Oliveira, ouvida na primeira parte desta série, e a técnica de enfermagem Maria Luíza de Almeida.

Autor: Marcelo Freitas